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[OWN] Debaixo da cama

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Mensagem por River Knowles Seg Jul 31, 2017 11:06 pm


Monsters under your bed
And I am more than this frame / I feel hurt and I feel shame / I just wish you would feel the same / And I am more than these bones / I feel love, I feel alone / I just wish you would come home (Flesh And Bone, Keaton Henson)

“Você quer saber como vim parar aqui?” River perguntou, jogando as pernas sobre a mesa e soltando um suspiro cansado. “Tudo bem, eu te conto. Não é como se fosse acreditar, mesmo.”

“Por quê?” Os olhos da mais nova brilhavam de curiosidade.

“Porque ninguém acredita em monstros vivendo debaixo da cama, Charlie. Então se você ver um, é melhor começar a correr e deixar todo o mundo se ferrar.”

“Eu acredito.” A criança falou com tanta veemência que só podia estar mentindo. River ergueu as sobrancelhas. “É sério! Eu acredito em você.”

“É? E se eu disser que um deles está bem... Aqui!” fez cócegas na garota, que a empurrou com um ‘para’. Trocaram sorrisos endiabrados enquanto Charlie tentava se vingar. A mais velha prendeu suas mãos, sua expressão se tornando séria. “Mas sem brincadeira, eles existem. E são muito, muito maus.”

“Que nem nos livros?”

“Que nem nos livros, só que de verdade. Um deles pegou minha mãe.”

Ela arregalou os olhos. River não sabia dizer se só estava interessada em uma boa história ou se realmente acreditava nela.

“Estava de noite, escuro, mas eu tinha deixado a cortina aberta e entrava luz da rua. As sombras se espichavam como pernas de aranha, e qualquer coisa que se mexesse fazia elas dançarem. Fiquei com medo. Levantei para fechar a cortina, e foi aí que eu vi: no reflexo do vidro, dois olhos amarelos e famintos.”

A garota se encolheu.

“Que nem de um lobo?”

“Não deu para ver direito. Sumiram assim que eu me virei.”

“Por que você não chegou mais perto, então?”

“Porque eu não quero morrer, Charlie. E aquele monstro estava com fome.”

“Como é que um monstro com fome apareceu debaixo da sua cama?”

“E eu vou saber? Azar. Depois de tanta coisa estranha que já me aconteceu eu parei de perguntar o porquê.”

“Tipo o quê?”

“Tipo um monstro com fome aparecer debaixo da minha cama. Agora me deixa terminar a história.” Bagunçou-lhe os cabelos. “Eu fui na ponta dos pés até o quarto da minha mãe, morrendo de medo, e puxei a coberta dela. Ela não acordou. Balancei e também nada.”

“O monstro tinha pegado ela?”

“Não. Ainda não. Minha mãe só estava fingindo para ver se eu ia embora.” Deu um sorriso amargo. “Quando chamei ‘mãe’ umas três vezes ela se levantou e brigou comigo. Estava com bafo de cerveja, então dei o fora dali. Mas eu ainda tinha medo. Dava para sentir meu coração batendo, e quase gritei quando vi uma sombra se mexer perto do meu quarto. Desci as escadas correndo e me escondi no armário da cozinha.”

“Por que no armário?”

“Eu... Não sei. É onde eu me enfiava quando queria me esconder da mãe. E também era pequeno, acho que não cabia um monstro lá.”

“E tinha facas?”

O sorriso agora foi genuíno.

“Sim, tinha facas. Eu peguei uma e fiquei lá escondida, tremendo, ouvindo cada sussurro dos canos como se fosse um grito. E então do segundo andar veio a voz da minha mãe: ‘já falei para me deixar dormir, inferno!’. Alguma coisa de vidro quebrou e tudo ficou quieto. Foi como se derrubassem uma bola de boliche no meu peito. Minha mãe, sozinha lá encima com aquele monstro de olhos esfomeados.”

“Eu achei que você não gostava dela.”

“Não. Mas eu me importo...” sua voz falhou. “Me importava com ela. Coisa de família, eu acho.”

“Ela também se importa com você?”

“Sim. Eu acho... Isso importa?” sacodiu a cabeça. “Vamos voltar para a história. Eu estava com medo do monstro, mas com mais medo ainda de alguma coisa acontecer com minha mãe. Saí do armário e fui andando bem devagar até o quarto. A porta já estava aberta. Estava tudo tão quieto que parecia uma foto congelada no tempo. Comecei a me perguntar se não tinha imaginado coisas. Minha mãe continuava na cama, exatamente igual antes. Fui chegando minha mão para encostar na coberta, tremendo até a ponta dos dedos, e  então vi alguma coisa se mexer. Me virei já com a faca armada, e perdi o fôlego quando percebi que era a cortina balançando com o vento. Tinha um buraco na janela.”

“Um buraco?”

“Um buraco. Como se tivessem atirado algo pelo vidro. Senti um arrepio nas minhas costas e me abaixei. Na mesma hora um vulto passou por cima de mim, sem soltar nem um gemido quando acertei minha faca nele. Pousou de volta nas sombras, e quando me virei para ver só enxerguei aqueles olhos amarelos, maldosos. Foi chegando perto devagar, a cada passo revelando a forma que tinha: uma mistura de leão e hiena que mostrava fileiras e mais fileiras de dentes afiados. Ele abriu a boca e, o que mais me matou de medo, falou com a voz da minha mãe: ‘Eu te mostro o monstro’. Aquela tinha sido a última coisa que ela me disse antes de eu sair para a cozinha.”

“Como é que ele fez isso?”

“Não sei. Ele disse, eu morri de medo, e é isso. Os comos e porquês não importam tanto na hora do aperto.”

“Mas como você acha que foi?”

River sacudiu os ombros e a criança fez um biquinho. Ela suspirou.

‘’Não sou monstróloga. Talvez ele tenha usado um balão de hélio para afinar a voz e aprendido inglês tomando chá com minha mãe. Posso continuar agora?”

Charlie confirmou, se inclinando tanto para frente que por pouco não caiu da cadeira.

“Ele pulou em mim. Eu estava tão assustada com o truque da voz que quase não consegui sair do caminho. Senti as garras rasgando meu pijama, arranhando meu braço.”

“Você chorou?”

“Na hora, não. Na hora eu estava com tanto medo que não senti doer. Mas depois chorei muito.”

“Eu não sabia que medo fazia isso.”

“Só quando é muito, muito medo. Torça para nunca te acontecer.”


Ela balançou a cabeça numa afirmativa, mas River duvidava que realmente tivesse entendido – seus olhos tinham aquele brilho audacioso de quem quer experimentar.

“Charlie” Desceu suas pernas da mesa e aproximou-se da criança. “Nada de procurar monstros debaixo da cama ou coisas perigosas. Promete para mim que você vai se cuidar, está bem?”

“Está bem.”

“De dedinho?”

Estendeu-lhe o mindinho. Ela fez uma careta.

“Charlie...?”

“Está bom... De dedinho.”

Firmaram o “pacto” e River puxou a menina para seu colo, bagunçando seus cabelos.

“O leão-hiena não queria me arranhar, queria abocanhar meu pescoço. Como eu saí do caminho todo aquele impulso continuou. Ele soltou um gemido, tentou frear, mas era tarde demais: atravessou a janela e caiu direto no jardim. Senti um arrepio quando ouvi a voz da minha mãe lá embaixo, soltando pedaços aleatórios da última bronca que me deu.”

“Era o monstro?”

“Sim. Minha mãe, a de verdade, ainda estava na cama.”

“Como ela não acordou?”

A expressão de River se fechou. Seu olhar focou em algum ponto indistinto da mesa, a mente presa naquela noite a tantos anos atrás.

“Eu também quis saber. Ignorei os gritos do bicho e fui direto para a cama dela. Estava virada de lado, o cobertor puxado até a cabeça... Parecia dormir. Era quase igual a primeira vez em que entrei lá, só que agora com o vento frio da noite e um medo muito maior. Eu chamei, chamei e chamei e ela não respondeu. Só o bicho do jardim.” Pausou e respirou fundo, sentindo o calor das lágrimas descendo por seu rosto. “Eu... Eu acho que já sabia, mas não queria admitir. Não puxei a coberta.”

A criança a encarou sem entender. Ainda assim estendeu os bracinhos ao redor de River, tentando consolá-la.

“O monstro pegou ela, Charlie. E agora queria me pegar.”

“O que você fez?”

“Eu não deixei.” Forçou um sorriso que mais pareceu um animal mostrando os dentes. “Ele continuava gritando e gritando na voz da minha mãe. Eu fechei a porta do quarto e comecei a arrastar o criado para montar uma barreira.”

“Você tinha um criado?”

“Um criado mudo. Fazia um barulho horrível enquanto eu puxava, parecia um animal urrando, mas mesmo assim não abafou os gritos quando passei pela janela. A cortina tinha rasgado e caído, agora só retalhos dançavam com o vento, então quando olhei para o lado o que vi foi o jardim: a grama seca e mal cuidada, as árvores velhas chacoalhando suas folhas, os canteiros vazios... E aquele leão-hiena horroroso e quebrado, as pernas torcidas de um jeito que não era normal nem para monstros.”

“Como você sabe? Você não é monstróloga.” Retorquiu a criança, cruzando os braços. River riu.

“Não, não sou. Mas se ele estivesse bem não teria ficado ali, não depois do que eu fiz. Olhei para ele lá, gritando, se torcendo, gemendo... Ainda tinha aquele brilho de maldade nos olhos. Fome. Raiva. Senti vontade de sair correndo.”

“Por que você não saiu?”

“Você não pode correr dos seus medos para sempre, Charlie. Eles te pegam por trás e arrancam seu couro.”

“Mas você correu antes!”

Ela estava mesmo prestando atenção. River mordeu o lábio inferior, contendo um sorriso enquanto pensava em um bom jeito de explicar.

“Enfrentar seus medos não quer dizer correr para o perigo. Isso é ser burro. Não seja burra, está bom?”

“Mas então quando...”

“Quando você não tem escolha. Ou quando a escolha é muito ruim.”

Charlie franziu o cenho.

“Eu não ia deixar minha mãe sozinha com ele. De novo, não. Mesmo sabendo que ela...” Sua voz falhou. Soltou o ar num suspiro. “Eu apoiei o criado na parede e levantei suas pernas. Era pesado. Precisei fazer muita força, mas ele voou pela janela e caiu bem encima do monstro. Ouvi um som triste, como um cachorro apanhando, e então o leão-hiena se desmanchou em pó.”

“Pó?”

“Sim. Uma areia fina e dourada que foi embora no vento.”

“Mas por que o monstro virou pó?”

River mais uma vez balançou os ombros.

“Eu não sei, Charlie. Só sei que todos os monstros que já matei viraram pó.”

“Todos? Você encontrou mais?”

“Muito, muito mais.”

“E venceu todos eles?” Tinha de novo aquele brilho aventureiro nos olhos, as mãos se fechando em pequenos punhos e socando o ar. River segurou-as com calma.

“Nem todos. Não correr para o perigo, lembra? Da maioria eu só fugi.”

“Mas e se eles pegarem outras pessoas?”

“O problema é delas.”

“Mas...”

“Não vale a pena, Charlie. O problema é delas se não acreditam em monstros.”

“Mas e se acreditarem? Você já tentou contar?”

River soltou um riso amargurado, largando-lhe os punhos.

“Eu tentei. Logo na manhã seguinte. Depois que matei o monstro me escondi de novo no armário, tremendo e me agarrando à faca como se minha vida dependesse disso. Não sei quanto tempo fiquei lá, o bastante para começar a sentir dor e chorar. Uma hora eu ouvi o som da campainha. Ela tocou mais duas ou três vezes e então meu coração pulou do peito: outra vez o som de vidro quebrando.”

“Outro monstro?”

“Eu achava que sim. Ouvi vozes chamando minha mãe, mas não confiei - eu me lembrava do leão-hiena falando igual ela. Tentei ficar quieta. Os berros e os passos abafaram meu choro baixinho. Logo ouvi sirenes, também, e ainda mais vozes apareceram. Então alguém pediu silêncio. Prendi a respiração enquanto o som de sapatos contra o piso chegava cada vez mais perto. Abriram a porta do meu esconderijo. A luz que entrou me deixou cega. Eu pulei de susto, balançando a faca de um lado para o outro e quase acertando o braço de alguém.”

“Alguém?”

“Eram policiais, não monstros.”

“Como é que eles foram para lá? Você chamou eles?”

“Não. Não sei quem chamou, talvez um vizinho. Os policiais precisaram de um bom tempo para conseguir me acalmar. Então perguntaram o que tinha acontecido, e eu contei tudo.”

“Eles...”

“Não acreditaram, é claro. Sabiam que um animal tinha atacado minha mãe, mas acharam que minha história era baboseira. Coisa de criança para lidar com o que não entende. Tentei contar para os médicos que vieram olhar meu braço e até para a assistente social. Ninguém deu bola. Só me olharam com cara de pena e me colocaram na viatura. Eu sentei no banco frio e macio, ainda segurando a faca, apertando o cabo com tanta força que meus dedos doeram. Vi um bando de curiosos chegando perto da casa, fazendo perguntas, e os policiais me largaram de lado para afastar eles. Aproveitei o momento e pulei da viatura.”

“Por quê?”

“Eles não acreditavam em mim, Charlie. Tentaram tomar minha faca e um deles me fritou com os olhos quando eu não quis largar. Dei o fora dali assim que consegui, não iria a lugar nenhum com a polícia.”

“Mas eles podiam te proteger!” Simulou uma arma com os dedos.

“Você não pode se salvar de um perigo que não enxerga, minha mãe é prova disso. Se ela tivesse me ouvido...” Inspirou fundo. “Não importa. Eu não ia ficar com eles e ver tudo de novo. Sumi na multidão que crescia cada vez mais em volta da casa. Era suado, apertado e quente, enquanto todos tentavam chegar mais perto eu só queria ir para longe dali. Toda hora eu trombava em alguém e recebia uma bronca diferente.”

“Para onde você foi?”

“Não sei. Para longe. Andei até cansar, até sentir fome. Já não reconhecia a calçada ou as árvores quando engoli a vergonha e pedi ajuda para uma velhinha. Ela pareceu sentir pena de mim, mas tinha um sotaque tão estranho que eu quase não entendi quando me convidou para a casa dela. Foi arrastando os pés até o final da rua, mal usando a bengala que carregava.”

“E você seguiu ela?”

Confirmou com um aceno de cabeça.

“Entramos pela cozinha. Saía um cheiro tão maravilhoso do forno que minha barriga roncou. A velha sorriu e pediu para eu esperar na sala enquanto o bolo ficava pronto, até me ofereceu biscoitos!” Fez uma careta. “Eu devia ter desconfiado.”

“Mas por quê? Ela parece legal.”

“Nunca aceite doces de estranhos, Charlie. Ou promoções, ou tickets premiados, ou qualquer coisa que te digam que é de graça. Nunca é, só estão te escondendo o preço. E o preço que a velha queria cobrar era muito, muito alto.”

“O que ela queria?”

River soltou um riso amargo.

“O mesmo que eu: comida. Percebi que tinha algo errado quando mordi o primeiro biscoito. Tinha um gosto esquisito, e não era nem porque a velha teve a ideia horrível de misturar menta com chocolate. Era um gosto estranho, amargo e escondido. Me fez cuspir aquilo fora.”

“Menta com chocolate? Eca.” A criança colocou a língua para fora.

“Sim, eca. Eu não quis provar mais nenhum depois disso, decidi esperar o bolo fazendo outra coisa. A sala era simples: um sofá, uma mesa de centro e um tapete carmesim. E os restos de um biscoito cuspido no canto. Me senti mal olhando para a bagunça que fiz. Levantei e fui procurar um pano ou papel higiênico para limpar.”

“Por que você não pediu para ela?”

“Porque ela estava fazendo o bolo, não queria que parasse para pegar uma coisa que eu podia achar sozinha. A velha cantava num tom alto e desafinado enquanto mexia a calda, nem percebeu quando passei pela cozinha e entrei no corredor. Eu fui andando até o final e abri a última porta. Senti meu coração pular do peito: era como se tivesse saído da casa e entrado no ninho de uma cobra. Tinha várias trocas de pele espalhadas pelo chão, as paredes cheiravam a mofo e nelas estavam dependuradas várias redes, lanças e outras armas. Mas não foi isso o que mais me assustou – foram os ossos. Ossos de gente, esquecidos num prato encima da cama. Alguns ainda tinham carne.” Estremeceu com a lembrança. “Eu me livrei de um monstro para cair direto na armadilha de outro.”

“Ela era tipo a bruxa de João e Maria?”

“Sim. Levava criancinhas para casa, oferecia biscoitos e comia. Eu quis dar o fora dali, passei de quarto em quarto procurando portas, janelas... Qualquer coisa que desse para a rua. Não tinha nada. A única saída era a da cozinha. Percebi, então, que a cantoria tinha parado. Quis chorar. Saí correndo de volta para o quarto dos fundos, o com as armas, e fechei a porta. Ela bateu com um ‘TLEC’ que anunciou para a casa inteira onde eu estava. Tremi de medo, não tinha saída. Fui até a parede e puxei uma das armas: uma espada cor de bronze que pareceu pesada demais para mim. Então o monstro entrou. Ainda era uma velha, pelo menos da cintura para cima, com os cabelos brancos presos numa redinha e o rosto enrugado. Mas suas pernas não tinham nada de humano. Era como se alguém tivesse cortado elas fora e colado o corpo de duas serpentes gordas no lugar. Me olhou com um ódio que nenhuma velhinha carregava.”

“Por quê?”

Deu de ombros.

“Eu acho que ela não gostava do almoço mexendo nas coisas dela. Ou do almoço correndo com uma espada e tentando acertar sua barriga. Ela deslizou para o lado e segurou meu braço. Dei um grito quando torceu ele. Fiquei desesperada, tentei acertar minha faca na mão dela, mas o metal não fez nada. A velha só ficou olhando e rindo, lambendo os lábios. Comecei a sentir raiva. Aquela aberração era tão mais forte do que eu, do que todas aquelas crianças que enganou e matou... Ia atrás de quem não conseguia se defender, só, e ainda brincava com a comida.”

“Como é que você escapou?”

“Eu não sei. Só sei que senti muita raiva, e de repente o monstro me largou como se minha pele pegasse fogo. Seus olhos ficaram estranhos, desfocados, quase como se quisesse chorar¹, voltou a parecer uma senhora de idade ao invés de um monstro comedor de criancinhas. Não me enganou. Larguei a faca e peguei a espada, dessa vez com as duas mãos. Parecia mais fácil de usar do que antes². Girei ela na direção da velha, que deslizou de novo para o lado, mas dessa vez eu fui mais rápida: mudei de repente para uma estocada e furei seu ombro.”

“Por que a espada cortou e a faca não?”

“Armas normais não machucam monstros, Charlie. Mas as armas da velha não eram normais.”

“Eram mágicas?”

“Não sei. Não pareciam. Só tinham um brilho estranho e cortavam qualquer monstro. O sangue cor de ouro escorrendo pelo braço da velha era prova disso. Ela soltou um chiado horrível e puxou uma lança da parede, mas eu estava muito perto para ela conseguir usar aquilo. Parecia tonta, desorientada, não estava lutando direito. Se estivesse, teria pegado outra coisa e me matado. Tentei acertar o ombro machucado. Ela colocou a haste da lança no caminho e forçou minha espada para longe. Seria meu fim se não estivéssemos tão perto. Do jeito que estava não teve espaço para me empalar, mas conseguiu acertar o cabo nas minhas costelas. Caí no chão. Ela levantou a lança e tentou cravar minha cabeça. Eu quase não consegui me arrastar para o lado a tempo, senti as farpas voando quando a ponta de metal entrou no piso de madeira. A velha puxou a lança, mas estava bem presa. Aproveitei a chance e acertei o que seria sua coxa. A espada entrou fundo e o monstro gritou. Largou a lança e tentou tirar a espada da coxa, machucando os dedos quando encostava na lâmina. Puxei ela de volta. O gemido dele foi tão horrível que até hoje me dá pesadelos. Caiu no chão, apertando o machucado como se isso fosse fazer o sangue parar de sair. Eu me levantei e acertei seu pescoço. A velha virou pó.”

Charlie a encarava de olhos esbugalhados.

“Legal!” Exclamou com certo fascínio.

“Não, não foi legal. Eu dei sorte, e mesmo assim quase morri. Fiquei sentindo a pancada da lança por quase um mês depois disso.”

“Por que você não foi no médico?”

“Eu não tinha dinheiro, Charlie. E não sou adulta. Eles com certeza iam chamar a polícia.”

“Então como é que você fez?”

“Passei a morar na casa da velha. Lá tinha comida, água e um sofá para eu dormir. Também tinha a cama, mas de jeito nenhum eu ia ficar no quarto das armas. Peguei a espada, fechei aquela porta e não abri mais. Voltando para a cozinha vi o bolo na mesa, tão cheiroso quanto quando eu cheguei, e comi até não aguentar. Acho que a velha ia comer ele de sobremesa.”

“Por quê?”

“Porque não tinha o gosto estranho dos biscoitos. Na hora eu não sabia, mas depois encontrei um livro de receitas e descobri que ela colocava veneno nos doces. Não para matar: para dar sono, para deixar a pessoa devagar... Ela gostava de brincar com a comida.” Balançou a cabeça em reprovação. “Eu li aquele livro de ponta a ponta. Para saber o que eu podia comer e o que não podia.”

“Ela colocava veneno na receita? Eca.”

River deu um sorriso de lado.

“Ela tinha receitas de veneno.”

“Continua eca.”

“Sim, continua.”

“Mas e quando você tinha mesmo que ir no médico? Como é que você fazia?”

“Eu tive, uma vez. Foi anos depois, eu não estava mais morando na casa.”

“Por quê? Lá não era legal?”

“Era, mas eu descobri do pior jeito que os monstros me encontram fácil quando fico num lugar só. A rua é melhor para fugir.”

“Você fugiu para onde?”

“Para lugar nenhum. Para todo lugar. Eu só ficava vagando, cada noite dormindo em um canto diferente. Eu gostava de passar perto da minha antiga casa, às vezes, e numa dessas ouvi minha mãe me chamando.”

“Mas o monstro não tinha pegado ela?”

River balançou os ombros.

“Eu nunca puxei a coberta, Charlie. Não tinha certeza, só... Sabia. Também sabia que aquilo não estava certo – se fosse minha mãe, já teria um chinelo voando para me acertar.” Torceu os lábios. “Mas eu queria que fosse. Queria tanto que mordi a isca e fui andando bem devagar para a voz. Minha mão tremeu no cabo da espada quando entrei no jardim. Estava bem pior do que antes: não tinha mais grama, a galha das árvores era tão grande e selvagem que se enroscava na fiação, o chão estava cheio de lixo... E lá no meio, bem onde ele tinha caído, estava o leão-hiena. Totalmente inteiro e com aqueles olhos amarelos queimando de ódio. Eu gelei, de repente era de novo aquela criancinha com medo da própria sombra. Me virei e saí correndo.”

“Mas você já tinha vencido ele antes!”

“Porque eu tive sorte, e porque eu não tive escolha.” Seus dedos roçaram uma das cicatrizes em seu braço. “O medo nunca vai embora, Charlie. Não importa quantos monstros eu encontre, quantos eu mate... No final sempre sobra aquele quarto com a coberta que não tive coragem de puxar. Estava logo no andar de cima. E atrás de mim estava o monstro culpado por isso. Eu tropecei num saco de lixo e caí. Senti os dentes se fechando na minha perna, a dor tão forte que me fez gritar. Puxei minha espada do cinto e balancei na direção do monstro. Ele teve que me largar para escapar dela, e eu me arrastei para o tronco de uma árvore. Tentei usar ela para me levantar, mas foi como se enfiassem uma faca na minha perna. Caí sentada e chorando. Estendi a espada na minha frente e esperei o monstro vir. Ele tinha medo do metal, eu acho, ficou só me rodeando. Minha perna sangrava muito. Tentei levantar outra vez, mordendo a língua para sufocar o choro, e me joguei para cima dele.”

“Mas você não estava com medo?”

“Morrendo de medo. Eu devia parecer um animal desesperado, espada em punho e um grito de dor e ódio na garganta. O bicho hesitou. Minha espada rasgou sua orelha desceu para a pata da frente, que fendeu como um casco de cavalo. Agora nós dois gritávamos. Ele pulou no meu peito e me prendeu contra o chão, as garras rasgando minha blusa e arranhando minha pele. O leão-hiena tentou morder meu pescoço. Segurei a lâmina da minha espada com uma mão e o cabo com a outra e coloquei ela entre nós. Meus dedos sangraram quando  o pescoço dele bateu na espada. Senti o bafo sujo e sangrento no meu pescoço, vi os olhos maldosos perderem o brilho, e mais uma vez o bicho se desfez em pó. A milímetros de me matar.” Estremeceu. Ainda conseguia sentir os dentes arranhando a pele. “Eu quase morri. Estava sangrando muito, e sentindo muita dor para conseguir me arrastar para qualquer lugar. Apertei o machucado na minha perna. Meu coração batia tão rápido que comecei a arfar, saía cada vez mais sangue, e então, igual naquela noite, ouvi o som de sirenes.”

“Era a polícia?”

“E uma ambulância. Foi o que me salvou. Foram eles que me levaram para cá.” Gesticulou para o quarto e bufou. “Não consegui fugir internada. Depois que fiquei boa eles me colocaram aqui. Um lar temporário.”

“Lar temporário?”

Bagunçou os cabelos da menina.

“Pergunta para os seus pais, Charlie. Agora está na hora de você ir dormir.”

Ela fez um pouco de birra, pedindo que explicasse o tal lar temporário, que contasse mais histórias... Mas River foi firme. Colocou a criança na cama e foi para seu próprio quarto. Deitou-se com o corpo leve. Sentia, de certa forma, que Charlie realmente acreditava nela.

Naquela mesma noite recebeu prova disso.

“River...” A vozinha assustada quebrou seu sono. “Tem um monstro debaixo da cama.”

A menina segurava uma faca serrilhada, seus olhos cheios de pavor e excitação. Os da mais velha só tinham pavor. Ela levantou de um pulo e abriu o guarda-roupa, jogando várias peças para o lado até revelar o brilho bronzeado de uma espada. Puxou a arma e se virou para Charlie com uma seriedade mortal.

“Fica aqui.”

“Mas...”

“Charlie, você prometeu.”

“E se o monstro te pegar?”

River segurou seu ombro.

“Então você corre. Corre e não olha para trás. Porque se ele conseguir me pegar, vai conseguir te pegar também.”

Não esperou resposta - largou a garota e disparou para o corredor, batendo a porta ao sair. Empunhou a espada e entrou no quarto.

As persianas estavam fechadas. Apalpou a parede até encontrar o interruptor e o pressionou, cerrando os olhos por conta da luminosidade repentina. Alguma coisa correu para debaixo da cama. River fechou a porta e se aproximou com cautela, o piso de madeira estalando a cada passo. Tirou o pé no exato momento em que uma lâmina surgiu das sombras e acertou onde ele estava. Monstro, definitivamente. Aproximou-se, a espada dessa vez preparada, e acertou a criatura quando ela tentou apunhalá-la. O som de metal contra metal preencheu o quarto. Um escorpião do tamanho de seu braço saiu da escuridão, as pinças estalando. River soltou um grito e recuou. Balançou a espada em sua direção apenas para vê-la ricochetear na carapaça.

“River?” A voz veio do corredor.

Murmurou um palavrão. As pinças se fechavam tentando agarrar sua perna, o que a obrigou a recuar.

“Não entra!” Berrou enquanto estocava sem sucesso o monstro. A cada segundo ele parecia ganhar mais confiança, projetando sua cauda peçonhenta e obrigando a garota a tomar uma posição defensiva. Logo ela não estava mais atacando.

A maçaneta rangeu. Seu coração pulou uma batida quando a criança colocou a cabeça para dentro do quarto.

“Charlie, dá o fora daqui!”

A distração foi o suficiente para que uma das pinças se fechasse em seu calcanhar. A dor irradiou pela perna inteira. Soltou um grito agoniado, descendo a espada por impulso na garra da criatura. Fez tanto efeito quanto antes.  Logo teve de subi-la de novo para desviar um golpe do ferrão. Ele tentou usar a outra garra para prender sua perna livre, mas River a levantou e meteu-lhe um chute na cara. Para sua surpresa, a criatura recuou.

Teve um estalo - a carapaça não cobria os olhos. Antes que pudesse aproveitar essa informação, no entanto, Charlie atirou sua faca no monstro. O objeto quicou inutilmente e caiu no chão, mas fez seu alvo tomar consciência da criança no quarto. Ele deixou River de lado e foi atrás da presa mais fácil.

“Não!” Exclamou, agarrando num impulso a cauda do escorpião. Era forte. O animal se debateu enquanto a garota largava a espada e usava as duas mãos para prender seu membro. Jogou o peso do corpo sobre ele, forçando o ferrão contra a carapaça, e ouviu um estalo quando um deles quebrou. Aquilo o deixou furioso. Agarrou o braço da menina e atirou-a no chão. Ela se arrastou para longe, sentindo o corpo inteiro latejar. Olhou nos olhos da mais nova.

“Charlie... Corre.”

Ela balançou a cabeça, os punhos fechados. Não iria sair dali.

“Não seja estúpida!” Esbravejou.

Charlie então correu. Mas não para longe da criatura, para cima dela. River arregalou os olhos quando a criança passou voando pelo escorpião, que desengonçadamente tentou se virar e agarrá-la. Ela apanhou a espada e atirou-a para a mais velha. Só então ele a pegou.

O sangue latejou em suas orelhas quando ouviu o grito de dor da amiga. Usou a cama como apoio para se levantar. Sentiu uma fincada forte no tornozelo, mas não cedeu: disparou para cima do monstro e cravou a espada em um de seus olhos. Ele largou sua presa e virou as pinças para enfrentar River. Charlie então enfiou o pé na cara do aracnídeo, ao que a outra levantou a arma e perfurou mais um olho. Girou-a. A criatura agoniou. River forçou a lâmina para dentro da carapaça e o monstro se desfez em pó dourado.

As duas garotas se abraçaram.

“Nunca mais...” Murmurou, a cara enterrada nos cabelos da menor. “Nunca mais faça isso, ouviu?”

“Mas eu te salvei!”

A criança fazia um esforço hercúleo para não chorar. Sua perna estava avermelhada onde a garra se fechara, sangue escorrendo em alguns pontos. River olhou para a ferida e fez uma careta.

“Nunca mais.” Repetiu em tom firme.

“Mas...”

“Não quebre promessas, Charlie. E não morra por mim.”

Forçou-se a ficar de pé, os olhos lacrimejando de dor. Foi mancando até a porta e se virou. Abriu e fechou a boca diversas vezes antes de finalmente conseguir falar, seu tom beirando o desespero:

“Não me dê esse peso.”

Naquela noite cuidou da criança, mas na seguinte já não estava mais ali.

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Notas:

Poderes utilizados:

Defeitos & Qualidades:

Armas utilizadas:

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Mensagem por Hipnos Ter Ago 01, 2017 3:54 pm

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